domingo, 2 de janeiro de 2011

Homenagem a Carlos Drumond de Andrade

Carlos Drumond de Andrade – “Farewell”



Se Drumond estivesse vivo estaria com 108 anos. Mas como o poeta é imortal ele continua vivo para nós e o mundo.
Este artigo é uma síntese transcritiva da pesquisa de Alcides Villaça, professor de literatura brasileira da USP, Universidade de São Paulo.

‘De “ALGUMA POESIA” (1930) A “FAREWELL”, LIVRO PÓSTUMO DE 1996, DRUMOND CONSTRUIU UMA OBRA PROFUNDAMENTE DIALÉTICA, PERCORRIDA PELAS TENSÕES ENTRE O ELEVADO E O COTIDIANO, VIDA E MORTE, IDEALISMO E MATERIALISMO’ (VILLAÇA, 2002, P.5, Caderno, MAIS! Folha de São Paulo. Brasil.)

Segundo VILLAÇA, a compreensão da poesia de Drumond pede o reconhecimento do eixo básico de tensões, no qual ela se sustenta em seus mais variados movimentos. Tal reconhecimento é delicado e sujeito a algum reducionismo, já que pretende distinguir o que seria permanente em meio as múltiplas polarizações de atitudes, temas, homores e estilos do poeta.
De “Alguma Poesia”, (1930) a “Farewell” (póstumo, 1996), que marca Drumondiana se inscreve nos poemas, como uma espécie de assinatura inequívoca? Quem fala de “eixo tensões” dá de barato a inclinação dramática da personalidade do poeta e as oscilações que se realizam em sua linguagem; mas que específico drama em movimento anima essa voz moderna, entre as mais intensas da poesia do século 20? Uma sintética e sugestiva formulação desse drama essencial já está, como que num prenúncio para a obra toda, nestes versos do “Poema de Sete Faces”, que abre “Alguma Poesia:
“A tarde talvez fosse azul,/não houvesse tantos desejos”. Entre um talvez e um se , há espaço para expressar tanto a aspiração quanto o desalento do poeta, diante do fato objetivo. Esse compromisso simultâneo com os fortíssimos apelos da vida material e com as expectativas intemporais dá compasso aos movimentos básicos da arte de Drumondo.

Horizonte mítico A figuração de um absoluto tinge de azul a tarde, horizonte mítico contra o qual se movem os tantos desejos, que turvam, perturbam ou negam aquele teimoso e longínquo horizonte. O critério idealizante, base da atitude contemplativa, e os desejos da vida, desde a origem mais determinados e particulares, traçam uma dialética entre o alto desejo de uma experiência plena e suas quedas no chão prosaico que, uma vez tocado, dá novas razões de impulso, com o efeito de novos tombos. A dialética é irretocável, pois, nessa ordem a um tempo simbólica e vivencial, o azul absoluto e os desejos históricos obrigam-se ao movimento, são critérios para a refração do mundo empírico na consciência lírica e vice-versa. A “tarde azul” não é apenas um mito efetivo que se projeta no horizonte; é também uma ordem racional, que aspira a inteligência sensível e absoluta do mundo. OS “tantos desejos” contam por si mesmos a história do indivíduo, que inicia seu caminho pelas experiências insatisfeitas do “guache” no mundo torto, que se move direta ou obliquamente por impulsos políticos, que se internaliza nas ironias dissolventes, que sonda sem complacência as fundas raízes de origem, que investiga os limites da vida diante da morte.
Impulso rasteiro A tarde azul se chama também “aurora”, “arco”, tarde de maio”, “áureos tempos”, “mito, “amor”, “rosa”, “aliança”, “orfeu”, “sonho”. VILLAÇA faz referências numa alusão há outros poemas do Drumond apontando desejos inumeráveis das experiências contidas em cada poema do autor hora em estudo.

“Nomeia-se o impulso rasteiro, o medo específico,o desastre íntimo, a prova de imperfeição, o encontro impossível, a máquina perdida, a melancólica mercadoria, a desistência culposa, a mão suja, o remorso histórico, as raízes arrancadas, o objeto inútil, a inútil migração.” (VILLAÇA, MAIS!, p. 5, 2002)


O autor, na sua análise sobre o melhor de Drumond no século 20, afirma ainda, que o que move o elefante no poema “A Rosa do Povo”, é a “procura de amigos” na ordem plena de “um mundo mais poético/ onde o amor reagrupa/ as formas naturais”, mas o desejo dessa busca, ocorre, de fato,, num “mundo enfastiado, e o fatigado elefante é também tosco e desmontável. Já em “Um Boi Vê os Homens”, a solidez superior instala-se, blindada, na natureza do animal que rumina estático sua própria verdade, lamentando os tantos desejos dos homens que correm de um para outro lado esquecidos/ de alguma coisa”.. O contraste entre aquele elefante e este boi ilumina didaticamente o antagonismo complementar desses dois grandes livros de Drumond, bem como ajuda a compreender a dialética de sempre, armadas entre as variações do mesmo azul teimoso e as muitas formas de perde-lo, a cada tentativa de apreensão.
Na conclusão desse professor pesquisador, a despedida do poeta em “Farewell” comparece com a especial autoridade de quem dá por encerrada a sua história. Em meio ao caleidoscópio dos temas e motivos revisitados, o idealismo da tarde azul enfrenta a prova decisiva da morte. Para não sucumbir a ela, esse idealismo é recolhido pelo poeta e guardado no bolso.

Apresentamos agora alguns poemas escolhidos por essa autora. Neles Drumondo revela para o mundo a sua sensibilidade e leitura do mundo.

Poema de sete faces

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombrad
disse: Vai, Carlos! Ser guache na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas, pretas, amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meu olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era um fraco.

Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.



A FLOR E A NÁUSEA

Preso à minha classe e a algumas roupas,
Vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sobre a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola o doente e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Vomitar esse tédio sobre a cidade
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livre mas levam jornais
E soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoa-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Por fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
Passam de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia, mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.


A MÃO

Entre o cafezal e o sonho
o garoto pinta uma estrela dourada
na parede da capela,
e nada mais resiste à mão pintora.
A mão cresce e pinta
o que não era para ser pintado mas sofrido.
A mão está sempre compondo
módul-murmurando
o que escapou a fadiga da Criação
e revê ensaios de forma
e corrige o oblíquo pelo aéreo
e semeia margaridinhas de bem-querer no baú dos vencidos.

A mão cresce mais e faz
Do mundo-como-se-repete o mundo que telequeremos.
A mão sabe a cor da cor
E como ela veste o nu e o invisível.
Tudo tem explicação porque tudo tem (nova) cor
Tudo existe porque tudo pintado à feição de laranja mágica
não para aplacar a sede dos companheiros,
principalmente para aguça-la
até o limite do sentimento da terra domicílio do homem.

Entre o sonho e o cafezal
entre guerra e paz
entre mártires, ofendidos,
músicos, jangadas, pandorgas,
entre os roceiros mecanizados de Israel,
a memória de Giotto e o aroma primeiro do Brasil,
entre o amor e o ofício
eis que a mão decide:
Todos os meninos, ainda os mais desgraçados,
sejam vertiginosamente felizes
como feliz é o retrato
múltiplo verde-roseo em duas gerações
da criança que balança como flor no cosmo
e torna humilde, serviçal e doméstica a mão excede
em seu poder de encantação.

Agora há uma verdade sem angústia
Mesmo no estar-angustiado.
O que era dor é flor, conhecimento
plástico do mundo.
e por assim haver disposto o essencial,
deixando o resto aos doutores de Bizâncio,
bruscamente se cala
e voa para nunca-mais
a mão infinita
a mão-de-olhos-azuis de Cândido Portinari.

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